Estudar Violão e Isolamento Social: Reflexões
- Marcos Vinícius Araújo
- 6 de abr. de 2020
- 5 min de leitura
Estudar violão em isolamento significa preservar vidas.
Seria estranho ouvir isso se não estivéssemos passando por uma crise sem precedentes na história recente, decorrente da pandemia do Novo Covid-19. Se pensarmos que estudar um instrumento musical exige horas de atividade em isolamento, então a quarentena e o período de afastamento social não é exatamente um problema para quem estuda violão. Porém, a práxis musical, vista de forma mais holística, abarca outros aspectos fundamentais que vão além da visão mecanicista do estudo: características da personalidade que predispõem um indivíduo a seguir com a música e sua carreira, aspectos internos que motivam as pessoas a estudarem por longos períodos de tempo e com tanto esmero, capacidades de planejamento e organização, e também uma necessidade pessoal que alguns indivíduos parecem possuir que os leva a se envolver em uma vida musical como parte inerente de seu auto-conceito.
Ainda em um contexto pós segunda guerra mundial, o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi buscava compreender como alguns indivíduos ainda conseguiam viver uma vida plena, mesmo em meio à crise do pós-guerra. Esses indivíduos eram, em sua maioria, músicos, pintores, escritores e cientistas. Ao investigá-los, conseguiu definir um estado a que chamou de Flow, uma experiência de concentração intensa, porém não esforçada, em que o indivíduo se sente tão concentrado que não vê o tempo passar. No final da atividade, fica com a sensação de que a experiência valeu a pena não pelo resultado que conseguiu, mas pelo próprio processo. Ou seja, a finalidade da tarefa está nela mesma.
Uma implicação disso no processo de estudo é que todos deveríamos tentar encontrar o nosso ‘flow’ durante o estudo do violão, pois os benefícios são diversos. Minha própria pesquisa (acesse aqui https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0255761418814563) sinalizou as características de uma sessão de estudo em flow: um estado gratificante de concentração durante a busca de objetivos claros, próximos e desafiadores. Esses objetivos precisam estar um pouco acima das nossas habilidades percebidas, de maneira que o objetivo não resulte em auto-percepções negativas em relação a nossa própria competência. Essas são características do que chamo de objetivo ideal de prática. Ou seja, a resolução de uma passagem, a leitura de uma nova obra, a melhora do legato, o treino da performance, e diversos outros objetivos no estudo se tornam objetivos ideais quando apresentam as características acima mencionadas. Sinais claros da experiência de flow durante a prática são os sentimentos de intensa concentração e uma sensação de certeza em relação ao que se está fazendo. E após a sessão de estudo ideal, pode haver uma sensação de que não vimos o tempo passar e um sentimento de que a sessão foi gratificante.
A preocupação com a saúde, com os idosos, com os empregos, a vida social, a economia... o fato de não sabermos quando tudo irá voltar ao normal...enfim, tudo isso pode gerar ansiedade! Por outro lado, é importante salientar que algumas pesquisas indicam que pessoas que entram em flow regularmente apresentam níveis mais baixos de depressão e ansiedade. Logo, entrar em flow durante o estudo do violão também pode estar contribuindo para diminuir a incidência de ansiedade.
Uma das recomendações gerais de diversos órgãos de saúde também passa pela manutenção de uma rotina diária. Mas é importante lembrar que o período de estudo do instrumento é apenas um elemento da rotina. Ter muito tempo para estudar também tem o seu contra. Estudar horas a fio, movimentos repetitivos, insistência, tudo isso pode desencadear problemas físicos (tendinites, dores na lombar, tensão excessiva dos ombros e coluna, pescoço, etc.). Os alongamentos antes e depois das sessões de estudo tornam-se ainda mais relevantes em tempos de confinamento.
Outro ponto importante que contribui para se criar uma rotina é planejar a regularidade de atividades simples do dia-a-dia que normalmente são consideradas comuns. Ter hora marcada para: acordar, realizar as refeições, se informar (e cuidar para não consumir fakenews), conviver com as pessoas dentro de casa e, se sozinh@, ligar para amigos e parentes, fazer algum exercício físico (diversas aulas disponíveis online), estudar violão, ler um livro, assistir a uma série, ouvir algum podcast, meditar, e dormir. A leitura de livros, audição de podcasts e cursos online disponíveis também se apresentam como oportunidades de crescimento durante a crise.
Especificamente sobre o estudo do violão, isso também se relaciona com a capacidade de planejamento e gerência das metas de curto, médio e longo prazo.
Se no isolamento então irei precisar de períodos mais curtos de estudo, por ter que dividir o tempo com os diversos outros elementos da rotina, então é preciso traçar as metas em acordo com o tempo. De nada adianta eu pensar ‘ok, irei estudar a peça x’, sem ao menos delinear as metas, de preferência antes de pegar o instrumento. Seria mais proveitoso pensar, por exemplo: ‘irei nessa sessão, ler a peça x e identificar e marcar os trechos problemáticos. Na segunda parte da sessão, irei trabalhar a passagem y da peça z’. Essa divisão em pequenas metas poderá trazer mais ordem na consciência, senso de agência e reforço da confiança ao final do estudo, pois ficará mais claro como e o quanto o estudo estará rendendo. Outras metas também podem incluir a manutenção de repertório antigo, leitura e audição de novas peças para inclusão em novo programa, gravação de vídeos para alimentar mídia social, entre outros.
O processo de estudo do violão também possui outras dimensões a serem consideradas: por que estou estudando agora (motivo)? Quanto tempo devo trabalhar em cada objetivo/meta (tempo)? Quais estratégias e materiais devo utilizar (métodos), e como devo organizar o ambiente para estudar (ambiente físico), de forma a manter o foco (comportamento)? A quem posso recorrer e para quem posso tocar (fatores sociais)?
Refletir sobre o motivo pelo qual estamos estudando pode contribuir para o rendimento do estudo, o tempo para se conseguir atingir os objetivos, e para a motivação para prosseguir com o estudo. Se penso que preciso aprender determinada peça para ser melhor que outros, então estou desviando o foco do processo para aspectos não relevantes. Por outro lado, se penso que estou estudando para crescer como instrumentista para que consiga levar boa música para as pessoas, então poderemos nos sentir melhor, mesmo perante as dificuldades. Se atribuímos o sucesso ou o fracasso de uma performance à fatores externos, mais uma vez estamos perdendo a oportunidade de reconhecer quais são meus pontos fortes e meus pontos fracos, estes últimos a serem considerados para as sessões de estudo.
Os fatores sociais são particularmente um desafio em tempos de confinamento. Se estudamos para levar música para as pessoas, então precisamos desenvolver o hábito de tocar para os outros, tanto pessoal da área (colegas, professores, etc.) como leigos (amigos, parentes, etc.). O uso da internet pode auxiliar na promoção dessa dimensão social na prática musical em isolamento. Existem diversos apps sendo utilizados, tanto para aulas (zoom, google hangouts, skype, entre outros) quanto para ensaios e apresentações (jam kazam, instagram lives, facebook live, youtube live, entre outros). Ainda, a possibilidade da gravação do ensaio ou concerto torna-se também um aliado do estudo, pois também poderemos utilizar o material para a auto-avaliação.
A pandemia que estamos vivendo nos obriga a uma reflexão sobre quem somos e sobre nossa existência em relação ao outro. O esforço do isolamento social se traduz em pura fraternidade. E nesses tempos de crise, ao estudarmos nosso instrumento, em isolamento, tal como o sempre fazemos, estamos também contribuindo para conter a disseminação desse vírus e, em consequência, para preservar vidas.


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